quarta-feira, 28 de março de 2007

Amar

Amar é cultivar dois sentimentos. O amor, de fato, e o ódio pelo que rodeia o seu objeto amado.

Amar é se humilhar. É se expor. Amar é dizer que ama e não esperar o amor em troca. Amar é humanamente impossível porque todo humano espera algo em troca.

Pedro Víctor

domingo, 25 de março de 2007

Bravata

Não, eu nunca a amei. Mesmo apesar de tudo eu nunca a amei. Ela foi só algo que veio sem aviso, como uma daquelas chuvas de verão que inundam metade da cidade, e o seu efeito na minha vida foi igualmente calamitoso. Paixão? Não nego. Fui arrebatado desde o primeiro momento em que a vi, ela com seus olhos profundos, que pareciam estrelas recém saídas do céu. Mas eu nunca a amei. Então o tempo passou e a paixão já não queimava com a intensidade de antes e eu a fui perdendo aos poucos. A cada dia ela ficava mais distante e eu podia ver seu interesse por mim ir lentamente se esvaindo de seus olhos, até que finalmente ela se foi. Eu me pergunto como eu posso não ter previsto um final tão obvio. No final era apenas um caso, e essas coisas nunca duram mais que um interesse casual. Assim, quando ela me deixou, não houve dor ou tristeza, porque, afinal, eu nunca a amei. Hoje nada é como era antes e dificilmente voltará a ser. As musicas não tem mais a mesma graça, os dias não têm mais o mesmo calor, nem a comida tem mais o mesmo gosto, e as vezes me pego sorrindo ao me lembrar dela. Meu único conforto é me agarrar a uma bravata que nem mesmo eu consigo acreditar: Eu nunca a amei.


Marden S. Linares

quarta-feira, 21 de março de 2007

Quadrilha

domingo, 18 de março de 2007

Eu te amo...

"O ‘eu te amo’ é uma confusão, pois acreditamos amar o ‘te’, essa pessoa que produz a paixão e que pode ser pega com os braços, e amamos de fato o produto da paixão, uma figura selvagem e religiosa, que é outra pessoa. Então, tem-se a impressão que amamos a pessoa real realmente, e realmente amamos a pessoa irreal."


Robert Musil

Amor...

"Amor... Você já amou? Horrível, não? Você fica tão vulnerável. O peito se abre e o coração também. Desse jeito qualquer um pode entrar e bagunçar tudo. Você ergue todas essas defesas. Constrói essa armadura inteira, durante anos, pra que nada possa te causar mal. Aí, uma pessoa idiota, igualzinha a qualquer outra, entra em sua vida idiota. Você dá a essa pessoa um pedaço seu. E ela nem pediu. Um dia, ela faz alguma coisa idiota como beijar você ou sorrir e, de repente, sua vida não lhe pertence mais. O amor faz reféns. Ele entra em você. Devora tudo que é seu e te deixa chorando no escuro. Por isso, uma simples frase como "talvez a gente devesse ser apenas amigos" ou "muito perspicaz" vira estilhaços de vidro rasgando seu coração. Dói. Não só na imaginação ou na mente. É uma dor na alma, no corpo, uma verdadeira dor que entra-em-você-e-destroça-por-dentro. Nada devia ser assim. Principalmente amor. Odeio amor."


Neil Gaiman, Sandman 65

Carta

Eu não falo em paixão porque ela é uma palavra piegas e efêmera para mim. Eu poderia dizer que te amo, porque afinal... EU TE AMO... mas as coisas não funcionam bem assim. Você me diz que o amor é vulgar. Por que será que o amor é vulgar? Porque não se ama metade das pessoas que diz. Eu queria amar todo mundo, mas eu não amo meus inimigos – que apesar de não os tê-los não dou valor a quem não vou com a cara, o que é difícil, porém não raro. Eu tento não amar pessoas que vão sumir de mim, mas não consigo. Eu queria citar alguém, uma das milhares de frases fodas que existem sobre o amor e que certamente se encaixariam na situação, mas nesse texto só cabe nós dois e vai além de nós. Acho que amar é querer um “bem” pra alguém que independa do seu “bem”, mas como se esse “bem” fosse seu, porque na verdade é seu, afinal, te faz “bem” ver o ser amado “bem”... bem, um pouco mais que isso... na verdade muito mais que isso... mas simplesmente por aí...
Eu amo minha família, ou o que eu entendo de família. Meus amigos que parecem muitos, mas não são. Eu amo você... e você me diz “e daí?”, as coisas não funcionam bem assim... você sempre pensa em como as coisas funcionam, mas as coisas sempre funcionam de uma forma não-linear-caótica que foge ao seu pensamento e você fica pensando nisso... e eu gosto de te ver pensar, sem querer adivinhar em quê, mas eu acho você linda pensando calada, falando sem pensar, pensando nas palavras, pensando em besteiras, pensando na vida, pensando no nada. No fim das contas eu gosto de te ver. Gosto de você com lentes ou sem. Gosto de você com o cabelo preso com aquele charme só seu ou somente solto. Gosto de te ver tranqüila e gosto também do outro lado, apesar de que eu nunca vi, nem consigo imaginar. Gosto da sua caretice singular. Gosto de cada maneira da mesma maneira. Gosto de te ver sorrindo. Gosto do seu sorriso. GOSTO DE VOCÊ... mas as coisas não funcionam bem assim...

Então fica tudo do jeito que está. Um dia sem cor, uma terça-feira. Outro e outro mais na frente. No fim, a semana toda vai ser terça-feira, o ano todo vai ser terça-feira, minha vida será só terça-feira e o céu borrará a cor pra me lembrar de você.

“Voar! Como é bom voar... ”



Nelson Netto

A Janela Quebrada

Essa casa está morrendo. Ao menos é essa a impressão que ela me dá. Talvez seja por causa das paredes que um dia foram brancas estarem cinzentas, do mesmo jeito das cortinas que balançam pesadas nessa brisa fria. Ou talvez seja por causa dessa brisa fria que entra pela janela quebrada. A quanto tempo ela tá assim? Um mês? Um ano? Eu só sei que essa janela já estava assim no dia que ela se foi. Era um dia claro, daqueles bonitos, com passarinhos cantando e tudo mais. Eu acordei meio tarde e fui observar o movimento da rua pela janela. Foi quando eu a vi pela ultima vez. Ela tinha aquele mesmo olhar, belo e triste, o mesmo que me fez falar com ela naquela fila de mercado. Nossos olhares se encontraram por um instante antes dela ir. Eu queria ter gritado, corrido, ter feito alguma coisa. Mas eu só fiquei lá parado observando ela ir embora através daquela janela. No começo eu na senti muito. Era até divertido poder bagunçar a casa, deixar a tampa do vaso levantada e coisas do tipo. Mas com o tempo surgiu um vazio que nada podia cobrir, tanto que até a casa sentiu isso. Eu sei que eu tenho que pintar as paredes, trocar as cortinas e colocar um vidro novo na janela, enfim, continuar a vida, como vivem me dizendo. Mas por enquanto não dá. Por enquanto eu só quero ficar aqui observando a rua através dessa janela quebrada esperando por alguém que eu sei que nunca mais vai voltar.


Marden S. Linares

Oração do Mal-amado (Platonismo. A maldição do Mal-amado)

Coração arrebatado
Em idéias impossíveis
No coração de um mal-amado
O impalpável é visível.

E ainda sendo impalpável
É plenamente impossível
E num platônico desabafo
Faz-se o coração outrora
E pra sempre ferido.





José Maximo

O Oitavo Mal Amado

Eu lembro dela, como se fosse um sonho que teima em assombrar minhas horas despertas. Lembro daquele sorriso tão singelo e daqueles olhos tão perdidos, que pareciam me evitar, mas ainda assim iluminavam meus dias. Me lembro de falsas esperanças, doces ilusões e amargas decepções, tudo isso dando um estranho sentido a minha existência. Lembro de a ver passar por minha vida como uma estrela cadente, distante e inatingível, e como tal desaparecer, levando sem perceber meus sonhos, esperanças e decepções, deixando para trás apenas o vazio, o vazio que sinto, o vazio que sou, e lembranças que são como sonhos que teimam em assombrar minhas horas despertas.


Marden Linares

A Sétima Mal Amada

Mais mal amada não há se for pra falar de uma certa individua que se apaixonou por outro mal amado. Apaixonou não, apaixonar é um verbo que no fundo tem um significado pequeno e passageiro. Digamos... Ama, de verdade.
Ela faleceu, levaram metade dela, a mais preciosa, onde estava o amor, o calor e a alegria. A outra parte que ficou foi a que tinha medo de aviões de papel, e as flores tiradas do leito, já murchas, cheias de espinhos. Alguém já notou que mesmo quando a rosa enfeiurece os espinhos continuam intactos? Pois é.

Na metade furtada foi-se também desde a nomenclatura das músicas que ela julgava audível - sim, ela só julgava audível pois nada pra ela estava completamente bom, talvez seja por isso que ela foi ficar em uma situação tão mesquinha e vergonhosa de mal amada -até a fé naquele Deus! Sem falar que junto foi toda a “força” que ela tinha para exprimir as lágrimas.

Aqui, nesse instante, só resta um monte de cacos de vidro de um órgão que chamam de coração, e ele não é igual a estrelas do mar, que cresce denovo depois.

Jaz aqui, um corpo, uma alma, sem cor, seca e áspera... Somente pelo fato de ter-se deixado deliciar com um tal sentimento chamado amor. só porque deu o azar de deixar-se levar por uma serenata apaixonada,que nem era pra ela.

Jaz aqui, Eu.


Camille Amorim

O Sexto Mal Amado

É hilária a maneira de como se comporta um infeliz em relação ao almejo dilacerante por sua musa. Perde-se o nexo estético e sentimental que se vidram à apenas uma mulher. Cria estratégias, técnicas e planos para alcançar um coração que talvez nem tenha espaço. Vive em profundo declínio sombrio, reunindo a coragem dos grandes, para falar poucas coisas. Pouca coisa. “Eu te amo”.
Convenhamos à idéia de um plano perfeito e a diva agora em braços teus. Beija-te, abraça acaricia e quem sabe até satisfaz. E teu coração se enche, teus olhos e tuas palavras alteadas na praia aos ouvidos dela. Mas não te iluda. No mais tardar, ela há de escarrar na boca em que beija e esfolar de um sorriso sarcástico aquele mesmo coração que se encheu de uma suculenta carne podre.
Mas nem esse direito eu tenho, de tão invulgar que és, me deixa sem opções. Só cabe então a este inútil pranto transcrito, lançar ao nada, a hemorragia sentimental que jorra pelos meus olhos e secam no coração ou num ombro amigo alheio.
Esse coração não serve mais, dei-o de comer para abutres e agora hei de plantar um novo e com ele nascer uma cógnita musa. Musa celeste, de beleza radiante e perfeita. Torcida, aprimorada, alteada e limada. Uma jóia. Jóia que como ourives invejo e como transceptor venero, tal obra tão bem escrita e inspirada.
Em cada grito, cada choro, cada eco, cada pranto meu; Viva o intenso amor de um homem que te idolatra, adora e lamenta, a pequena distância de infinitos decimais que o separam da felicidade absoluta.

Luan Rodrigues

O Quinto Mal Amado (ou Amar é Estela)

O amor comeu os pôr-de-sol que eu não vi e as lembranças do cais. Comeu o luar e as estrelas. E a estrela mais bela era Estela, que como a lua cheia que só mostra uma face, se apagou de mim, agora céu nublado.
O amor comeu meus anos de vida e meus aniversários. Comeu os suvenires que eu tinha guardado. Comeu as horas que eu esperei para tentar dizer tudo o que eu sentia. E em todas essas horas eu só pensei em Estela, e ela pensava nos problemas dela.
O amor comeu as máscaras e as fantasias de carnaval. Só sobrou a máscara de Estela, que dança descalça no meu sono perdido. O amor comeu as notas e partituras das musicas que eu fiz pra Estela. Comeu as rimas e todo o significado que ela carregava, fazendo dela um lugar-comum.
O amor comeu a tatuagem que Estela fez em mim. E deixou uma ferida que até o tempo duvida que vá cicatrizar.
O amor comeu o céu também, em sua imensidão azul e triste. Comeu as poucas estrelas que lhe davam um brilho, o sol que jazia fraco, a lua e São Jorge. Só sobrou o dragão, e o dragão me atormenta a cada momento. O amor comeu todos os santos do céu, e na minha ladainha só havia o nome de Estela.
O amor comeu as poucas cidades por onde andei. Mas o que é o mundo pra quem viu o amor do outro lado do muro? E o amor comeu a rua da casa de Estela, e comeu as medidas e fronteiras, fazendo a nossa distância abstrata, oitenta e seis passos ou oitenta e seis léguas?
O amor comeu a minha inspiração e todas as palavras do meu vocabulário. Comeu dos meus sonhos até a mais simples das letras. Comeu o “eu te amo” que eu ia dizer na hora certa, e só me sobrou a lembrança de Estela.
O amor comeu todas as frutas, e só sobraram os cachos de Estela. O amor comeu o meu medo do salto e a vertigem da queda. Mas a dor maior é não cair nos braços de Estela.

Nelson Netto

O Quarto Mal Amado (ou Como o Amor é)

Sou um ser solitário de poucas palavras, e se houvesse como mostrar como é o que sinto, você não aguentaria em seu peito todo esse peso.Sua boca se distancia da minha por poucos centímetros,mas nossas almas têm a distância de um abismo.Sua pele é quente e reconfortante, e seus olhos brilham como diamante, mas esas pedras preciosas eu não posso ter jamais.E seu corpo?o que dizer do que mais desejo no mundo?
Sou um ser abandonado à sorte, um pobre vagabundo.
O que fazer para te ter ao meu lado, segurando minha mão?Entrar em coma?Chamar a morte?Se assim o for farei, pois ela se tornou minha amante, quando me deixaste só. Fui do pó ao pó e sei que vivi cada minuto por ti.
Sou um ser patético, um mero reflexo de mim.Já fui rei dos reis e dono de todos os jardins.Já fui cientista e descobridor, mas a maior descoberta foi a do amor.O amor que metralhou meu orgulho e minha honra, que me acabou com os preconceitos, o amor que me tornou essa sombra e que me fez implodir o peito.
Descobri tal perigo ao aproximar-me da bela menina que passeava no parque.
Pelo amor criei mundos, brincadeiras e doces.Criei cirandas, crianças e flores.E por causa do amor abandonei o paraíso.Troquei-o por teu sorriso de bela e inocente moça.
Pelo amor me abandonei,e o trono desertei.Pelo amor me dei a ti e de ti nada ganhei.Por amor eu me perdi em minha mente conturbada, me torturei com pensamentos e engolindo palavras.Fui morrendo a cada momento, me devorando pedaço à pedaço,fui sumindo de tempo em tempo, apagando cada pedaço de mim e de ti.
Sou criatura vil e fria, perigosa.Tudo o que fui sumiu e de ti só sobrou uma rosa.
De cheiro branco.

Pedro Víctor

Quadrilha dos Três Mal Amados

"João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para o Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história."

Carlos Drummond de Andrade


"JOÃO: Olho Teresa. Vejo-a sentada aqui a meu lado, a poucos centímetros de mim. A poucos centímetros, muitos quilômetros. Por que essa impressão de que precisaria de quilômetros para medir a distância, o afastamento em que a vejo neste momento?
RAIMUNDO: Maria era a praia que eu freqüentava certas manhãs. Meus gestos indispensáveis que se cumpriam a um ar tão absolutamente livre que ele mesmo determina seus limites, meus gestos simplificados diante de extensões de que uma luz geral aboliu todos os segredos.
JOAQUIM:O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
JOÃO:Olho Teresa como se olhasse o retrato de uma antepassada que tivesse vivido em outro século. Ou como se olhasse um vulto em outro continente, através de um telescópio. Vejo-a como se a cobrisse de poeira tenuíssima ou o ar quase azul que envolvem as pessoas afastadas de nós muitos anos ou muitas léguas.
RAIMUNDO:Maria era sempre uma praia, lugar onde me sinto exato e. nítido como uma pedra – meu particular, minha fuga,. meu excesso imediatamente evaporados.Maria era o mar dessa praia, sem mistério, sem profundeza. Elementar, como as coisas que podem ser mudadas em vapor ou poeira.
JOAQUIM:O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
JOÃO:Posso dizer dessa moça a meu lado que é a mesma Teresa que durante todo o dia de hoje, por efeito do gás do sonho, senti pegada a mim?
RAIMUNDO:Maria era também uma fonte. O líquido que começaria a jorrar num momento que eu previa, num ponto que eu poderia examinar, em circunstâncias que eu poderia controlar. Eu aspirava acompanhar com os olhos o crescimento de um arbusto, o surgimento de uma jarra de água.
JOAQUIM:O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
JOÃO:Esta é a mesma Teresa que na noite passada conheci em toda intimidade? Posso dizer que a vi, falei-lhe, posso dizer que a tive em toda intimidade? Que intimidade existe maior que a do sonho? a desse sonho que ainda trago em mim como um objeto que me pesasse no bolso?
RAIMUNDO:Maria não era um corpo vago, impreciso. Eu estava ciente de todos os detalhes de seu corpo, que poderia reconsituir à minha vontade.Sua boca, seu riso irregular. Todos esses detalhes não me seria difícil arrumá-los, recompondo-a, como num jogo de armar ou uma prancha anatômica.
JOAQUIM:O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
JOÃO:Ainda me parece sentir o mar do sonho que inundou meu quarto. Ainda sinto a onda chegando à minha cama. Ainda me volta o espanto de despertar entre móveis e paredes que eu não compreendia pudessem estar enxutos. E sem nenhum sinal dessa água que o sol secou mas de cujo contacto ainda me sinto friorento e meio úmido (penso agora que seria mais justo, do mar do sonho, dizer que o sol o afugentou, porque os sonhos são como as aves, não apenas porque crescem e vivem no ar).
RAIMUNDO:Maria era também, em certas tardes, o campo cimentado que eu atravessava para chegar em algum lugar. Sozinho sobre a terra e sob um sol que me poderia evaporar de toda nuvem.
JOAQUIM:Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
JOÃO:Teresa aqui está, ao alcance de minha mão, de minha conversa. Por que, entretanto, me sinto sem direitos fora daquele mar? Ignorantes dos gestos, das palavras?
RAIMUNDO:Maria era também uma árvore. Um desses organismo sólidos e práticos, presos à terra com raízes que a exploram e devassam seus segredos. E ao mesmo tempo lançados para o céu, com quem permutam seus gases, seus pássaros, seus movimentos.
JOAQUIM:O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
JOÃO:O sonho volta, me envolve novamente. A onda torna a bater em minha cadeira, ameaça chegar até a mesa. Penso que, no meio de toda essa gente da terra, gente que parece ter criado raízes, como um lavrador ou uma colina, sou o único a escutar esse mar. Talvez Teresa...
RAIMUNDO:Mariaera também a garrafa de aguardente. Aproximo o ouvido dessa forma correta e explorável e percebo o rumor e os movimentos de sonhos possíveis, ainda em sua matéria líquida, sonhos de que disporei, que submeterei a meu tempo e minha vontade, que alcançarei com a mão.
JOAQUIM:O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
JOÃO:Talvez Teresa...Sim, quem me dirá que esse oceano não nos é comum?
RAIMUNDO:Maria era também o jornal. O mundo ainda quente, em sua última edição e mais recente.
JOAQUIM:O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
JOÃO:Posso esperar que esse oceano nos seja comum? Um sonho é uma criação minha, nascida de meu tempo adormecido, ou existe nele uma participação de fora, de todo o universo, de uma geografia, sua história, sua poesia?
RAIMUNDO:Maria era também um livro: susto de que estamos certos, susto que praticar, com que fazer os exercícios que nos permitirão entender a voz de uma cadeira, de uma cômoda; susto cuidadosamente oculto, como qualquer animal venenoso entre as folhas claras e organizadas dessa floresta numerada que leva dísticos explicativos: poesia, poemas, versos.
JOAQUIM:O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
JOÃO:O arbusto ou a pedra aparecida em qualquer sonho pode ficar indiferente à vida de que está participando? Pode ignorar o mundo que está ajudando a povoar? É possível que sintam essa participação, esses fantasmas, essa Teresa, por exemplo, agora distraída e distante? Há algum sinal que faça compreender termos sido, juntos, peixes de um mesmo mar?
RAIMUNDO:Maria era também a folha em branco, barreira oposta ao rio impreciso que corre em regiões de alguma parte de nós mesmos. Nessa folha eu construirei um objeto sólido que depois imitarei, o qual depois me definirá. Penso para escolher: um poema, um desenho, um cimento armado - presenças precisas e inalteráveis, opostas a minha fuga.
JOAQUIM:O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
JOÃO: Donde me veio a idéia de que Teresa talvez participe de um universo privado, fechado em minha lembrança? Desse mundo que, através de minha fraqueza compreendi ser o único onde me será possível cumprir os atos mais simples, como por exemplo, caminhar, beber um copo de água, escrever meu nome? Nada, nem mesmo Teresa.
RAIMUNDO:Maria era também o sistema estabelecido de antemão, o fim onde chegar. Era a lucidez, que, ela só, nos pode dar um modo novo e completo de ver uma flor, de ler um verso.
JOAQUIM:O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte."
João Cabral de Melo Neto