quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Amor

Ainda era manhã quando eu cheguei na casa e talvez isso tenha tornado a minha impressão do lugar ainda pior, pois com a luz do sol refletindo em sua paredes eu pude ver que ela estava ainda pior do que eu imaginava. Eu desci do carro e fui me aproximando lentamente, com a impressão que eu não deveria estar ali. Isso não era somente pela aparência da casa, que parecia mais um resto morto – vivo de si mesma, mas sim pelo tom do chamado que eu recebi da Lucia, que foi o que me trouxe a esse local. Eu percebi a mensagem na minha secretaria eletrônica um pouco depois de acordar e ao ouvir não pude deixar de sentir um arrepio na espinha. Não por causa da mensagem, que foi um pedido bastante cordial e até divertido para que eu fosse visitar ela e o Julio na casa deles, nem a voz rouca e miúda por causa da doença dela, mas sim por algo distinto, um tom por traz de tudo isso, algo ameaçador, ruim. E mesmo assim eu fui na hora. Não podia evitar, eu continuava sendo o mesmo idiota de sempre quando o assunto era ela. Eu me lembrava do casamento deles enquanto cruzava o jardim em direção a porta da casa. A festa foi no dia da inauguração da casa que foi construída sob encomenda pelos dois. Toda a cerimônia ocorreu no jardim, um verdadeiro espetáculo no meio da primavera, com todas as flores de dezenas de cores se abrindo. Agora era apenas abrigo para troncos ressecados e secos. O casamento dos dois porem continuou em minha mente. Eu lembrava dos rostos de felicidade em todos os convidados, até a Carminha parecia feliz. Ela acabou se matando dois dias depois da cerimônia. Provavelmente o único que não compartilhava do clima geral era eu, mas isso era de praxe. A Lucia costumava dizer que nunca tinha me visto sorrir de verdade, e provavelmente ela devia estar certa. Desse modo eu acabei passando toda a festa em uma mesa num canto afastado para não atrapalhar o clima dos outros que estavam lá, de modo que eu acabei nem saindo nas fotos do casamento, mesmo sendo o padrinho. Quando cheguei na porta toquei a campainha e não tive nenhuma resposta. Toquei mais duas vezes e nada. Finalmente decidi tentar abrir a porta e descobri que estava destrancada. Lá dentro havia um ar pesado, morto, que dava uma impressão ainda piro que a que eu tive vendo a casa do lado de fora. As janelas estavam todas fechadas, com as persianas abaixadas deixando passar apenas pequenas frestas de luz para dentro da casa. Um pouco mais ao longe havia uma tv ligada num volume baixo, daqueles em que se assiste quando não se quer incomodar ninguém em casa durante a noite. Mas fora esse estado de abandono momentâneo a casa por dentro parecia bastante limpa e tinha sinais de uso recente. Comecei a chamar pelos dois e depois de um tempo obtive como resposta a débil voz de Lucia vindo do andar de cima. Apesar do meu impulso inicial, subi as escadas devagar, esperando encontrar Julio lá cuidando dela e por isso fiquei surpreso de encontra ela sozinha em um quanto com a porta aberta. Mas o que me surpreendeu mesmo foi a sua aparência. A comparando com a menina que eu conheci ou a bela mulher que eu havia visto pela ultima vez alguns meses antes nem sequer parecia a mesma pessoa. Estava magra, esquelética, deitada em uma cama e enrolada em lençóis grossos. Sua pele pálida, já quase repuxada sobre os ossos, e o seu cabelo que caia aos tufos sobre o travesseiro a fazia parecer um daqueles cadáveres ressequidos que as vezes se encontram nessas tumbas de civilizações perdidas. Quando me viu ela me deu um sorriso de boas vindas, tão agonizante que tive que me conter para não chorar. Ela com certeza percebeu isso porque emendou o sorriso com:
- Ora, vamos, eu não estou tão mal assim, estou?
Eu balancei a cabeça negativamente enquanto esboçava o sorriso. Esse senso de humor dela sempre continuava firme, mesmo em uma situação como aquela.
- Eu recebi seu recado. – Eu disse, tentando iniciar uma conversa.
- Eu sei que recebeu. – Respondeu ela – De outra forma você não teria vindo.
Tentei dar alguma resposta, mas me calei, porque aquilo era verdade. Desde o casamento eu havia passado a evitar encontro com eles, especialmente quando soube que ela havia adoecido. Pensava que seria melhor para todos assim, ou pelo menos melhor para mim. Eu nem sabia o quanto estava certo. Ficamos algum tempo em um silencio constrangido até que ela falou:
- Você lembra do dia em que a gente se conheceu, não é?
Eu respondi balançando a cabeça. É claro que eu lembrava. Era o primeiro dia de aula no primeiro ano, e eu havia sido transferido para uma nova escola. Eu nunca fui um sujeito de fazer novos amigos então fiz como sempre fazia quando me encontrava em situações como essa: Me sentei eu um canto e comecei a esboçar uns desenhos para passar o tempo. Continuei entretido nessa tarefa até perceber uma sombra que indicava alguém parado observando o que eu estava fazendo. Eu levantei a cabeça e lá estava ela sorrindo pra mim. “Bonita”, eu pensei enquanto devolvia um sorriso sem graça. Ela elogiou o desenho, se sentou ao meu lado e começou a puxar assunto e assim foi. Nos tornamos amigos e começamos a conviver muito. Não estou bem certo quando eu acabei me apaixonando por ela. Não foi algo de repente ou a primeira vista, mas sim uma coisa gradual que acabou se instalando e me consumindo sem que eu nem percebesse. Sei que antes da minha primeira exposição eu já tinha certeza de que não poderia viver sem ela. Mas logo tive que aprender, porque menos de um mês depois ela começou a namorar o Julio. Nunca consegui ficar ressentido com ele por isso. Ele sempre foi um bom sujeito e no final estava tão apaixonado por ela quanto eu, talvez até mais.
- Lembro sim, o que tem isso? – Eu falei.
- Só lembrei daquele seu desenho. – Continuou ela – Aqueles narcisos seriam um ótimo presente agora, não acha?
- Para com isso. – Eu respondi serio – Você tá bem longe de morrer.
Ela começou a rir como se tivesse ouvido uma criança dizer uma bobagem e ainda rindo falou:
- Me faz um favor. Pega aquela caixa em cima da mesinha e abre ela.
Eu fui ao local onde ela indicou e havia uma pequena caixa de madeira bastante velha, que parecia um dia ter sido decorada com letras ou desenhos feitos a tinta dourada, da qual só restavam traços. Eu abri e vi que dentro haviam um velho revolver e duas balas.
- O que raios é isso? – Eu pergunto.
- Um revolver. – Ela responde com um tom sarcástico – É uma velha herança de família. Foi com ele que o meu avô se matou a mais de 50 anos.
- E por que eu estou com ele agora? – Insisti perguntando.
- Porque você vai usar ele para me matar. – Falou ela dessa vez com toda a seriedade.
Eu olhei pra ela e vi que não estava brincando.
- Você tá louca! – Eu respondi – Cadê o Julio? Ele pode tirar essa idéia maluca da sua cabeça!
- Ali. – Falou ela apontando para a porta entreaberta do banheiro do quarto onde nós estávamos, com um sorriso assustador nos lábios.
Eu fui até lá tão perturbado que ainda estava com a caixa na mão. Quando entrei me deparei com o corpo de Julio enforcado com se próprio cinto. Voltei ainda em choque para perto de Lucia e ele ainda continuava rindo.
- Ele está morto...? – Perguntei ainda abalado.
- Sim. – Responde ela com uma calma fria – Não teve coragem pra aceitar minha proposta e acabou se matando. Ele sempre foi um fraco.
Eu recuei após ouvir isso, porque ouvi nessa frase aquele mesmo tom de ameaça oculto na mensagem deixada na minha secretaria eletrônica.
- Agora você vai terminar o serviço. – Ela continuou.
- E por que você acha que eu vou fazer isso? – E perguntei em pânico.
- Porque você me ama. – Ela responde sorrindo.
Por algum motivo aquilo me fez parar e começar a olhar fixamente para ela. Comecei a pensar que afinal faria um favor, tanto para ela quanto para mim. Ela pareceu ter notado a mudança na minha expressão e começou a sorrir ainda mais.
- Como eu pensei... – Ela falou.
Eu lentamente engatilhei a arma com uma das balas e apontei para o peito dela.
- Antes me responde uma coisa. – Eu falei. – Você algum dia me amou?
- Você sabe que não. – Ela responde secamente.
- Você poderia mentir. – Eu falei com um tom de desespero – Que diferença faria isso agora?
Eu devo ter feito uma cara bastante patética, porque ao ouvir isso ela começou a gargalhar, alto e com força, de um jeito que parecia impossível para alguém no estado dela.
- E por que eu te daria esse gostinho? – Respondeu ela entre os risos.
Então eu puxei o gatilho. Houve um estremecimento por todo o corpo dela e logo tudo acabou. E eu fiquei lá sozinho, por não sei quanto tempo com aquela arma na mão, tentando pensar no que eu havia acabado de fazer. Eu havia matado a mulher que eu amo. Então eu percebi que ainda restava uma das balas do velho revolver, e vi que só havia uma saída. Parei apenas para escrever isso. Para provar a mim mesmo que eu existi e que um dia eu a amei.

Um comentário:

Lawliet Lovedoll disse...

Fascinante.
Melancólico.
Real.